Esta é a história de Lia e João.
Lia e Rita estavam atarefadas na escolha da máscara para estrear no Baile de Finalistas. Havia-as de todas as cores e feitios, mas nenhuma agradava a Lia que preferia ir de cara descoberta.
- Que parvoíce! Nunca vi tal coisa... ir para um baile de finalistas com máscara... não era nada disto que eu tinha idealizado!
Rita não protestava. Tinha uma máscara cor-de-rosa na mão, salpicada de ínfimas estrelinhas brilhantes.
- Olha, esta deve ficar-me bem...
- Bâ... detesto isto.
- Minha cara amiga, agora já não se pode voltar atrás. E aproveita cada dia da tua vida... Pode sempre ser o último.
- Bem podia ser... nada disto faz sentido...
- Olha, deixa mas é de ser parva e vai ali experimentar esta máscara. Até é bem gira. Faz de conta que é o Carnaval de Veneza.
MAS NÃO ERA O CARNAVAL DE VENEZA. Era uma ameaça constante que pairava na atmosfera arroxeada. O medo que se tinha petrificado em máscaras tão dolorosamente inexpressivas como a agudeza do choro da alma e da raiva, da nostalgia por um passado que para sempre se perdera. A morte. O pânico, por vezes. Ou o pânico sempre, só que camuflado com máscaras anti-gás. O terror da iminência do terrorismo, há anos. E um gás tóxico e arroxeado abraçava o mundo venenosamente.
Sempre.
Lia chegou a casa e queria tirar a máscara e o fato. Olhou-se ao espelho. Parecia um monstro com aquela carantonha de borracha. Contemplar a humanidade do seu rosto era uma experiência tão remota que já mal recordava. Tinha horror às máscaras e aos fatos grotescos com que todos tinham obrigatoriamente de andar, como se fossem astronautas. E no fundo eram astronautas, porque se não podiam respirar o ar livremente, era como se o mundo não fosse deles mas fosse antes um mundo estranho, alheio. Muitas vezes ia na rua e chorava, e não podia limpar o rosto molhado porque não conseguia tocar em si própria. Bem, pelo menos ninguém conseguia ver as lágrimas a pingarem-lhe dos olhos... E os soluços ficavam também abafados... Para comunicar era preciso gritar através da máscara... enfim, o inferno à flor da Terra.
Apesar de estar pouco animada, acabou por ir nessa noite ao baile de finalistas. Quando acabou de se arranjar parecia a Pantera Cor-de-rosa vestida de astronauta. A máscara era até bastante bonita, tendo em conta que era uma máscara anti-gás: era ligeiramente rosada e brilhante, bastante mais estreita do que a que geralmente usava, logo menos assustadora, e... maravilha! Conseguia ver os seus olhos reflectidos no espelho. A máscara não era totalmente opaca como todas as outras. Antes de sair de casa colocou ao peito um crachá com uma foto sua estampada, de quando ainda podia sair com o rosto descoberto. A maior parte das pessoas também o fazia, para poderem ser identificados por algo que não fosse um simples nome ou a configuração de uma máscara de borracha. Espetou o seu sorriso eternamente inanimado no peito.
Ninguém reparou que era noite de lua-cheia. As partículas do gás tóxico faziam com que as pessoas se esquecessem que havia outros astros, estrelas, não porque provocasse amnésia, mas porque não lhes permitia contemplar as maravilhas celestes.
Com alguma dificuldade, no meio de tantos seres disformes, toscos e lentos, Lia acabou por conseguir encontrar Rita. Entraram juntas no recinto do baile, que era ao ar livre para minimizar os riscos de um possível ataque terrorista. Rita já saltitava frenética ao som da música do DJ, parecia uma bola de basket a ser driblada. Lia queria dançar, mas parecia que estava atarrachada ao chão. O sentimento permanente de raiva adensou-se-lhe e começou a correr, a correr, a correr o mais que pôde e tão depressa quanto pôde. Rita, entorpecida pela música, não teve a destreza de a seguir. Lia tropeçou numa pedra e sentiu raiva por não se ter magoado. Chorou convulsivamente até um vulto distorcido se aproximar dela e a tocar ao de leve. Mas foi um toque imaterial, porque nenhum dos dois o sentiu.
- Oi... então, o que se passa? Estou a ver que não te estás a divertir muito... Quando as estrelas morrem é como se o coração murchasse também.
Mesmo abafada pela máscara, era uma voz tão adocicada e melodiosa, que as lágrimas pararam de correr e a face secou, como se aquelas fossem as palavras mágicas.
Ela ergueu a cabeça para encarar de frente quem a interpelava e o coração de ambos brotou. O respirar de ambos, vibrante e compassado, parecia uma sinfonia inaudita. Ele vislumbrava os olhos dela, negros e brilhantes, sob a máscara. Ela não conseguia esquecer o mel das palavras dele.
-Sou o João. Oxalá conseguíssemos ver as estrelas... deve estar uma noite linda.
...a respiração em sintonia...
-Aliás, está uma noite linda, apesar de tudo. – continuou João.
-Mais bela seria se eu pudesse contemplar os teus olhos. Tenho a certeza que as estrelas morreriam de inveja.
-Todo este fumo que vês é produzido por elas. Têm medo de ficar ofuscadas com os teus olhos mais
negros e brilhantes que a própria noite. Coitadas, compreende-se, é uma humilhação para elas.
Lia riu-se, finalmente.
-Como é que sabes a cor dos meus olhos?
- Vê-se. A tua máscara é semitransparente e mesmo que não fosse, eu já sabia de que cor eram. Vi-os tantas vezes nos sonhos... Vamos aproveitar que finalmente nos encontrámos e dançar?
Ergueram-se e dançaram ao som da melodia que lhes ia na alma. Ao ritmo da respiração, sempre.
Contudo a respiração de Lia tornou-se mais ofegante e uma tosse convulsiva tomou-a. João, aflito, não sabia o que fazer. Subitamente, o seu olhar pousou num rasgão enorme no fato de Lia.
- Deve ter-se rasgado há pouco, quando eu caí.
- Há quanto tempo?
- Não sei bem... acho que perdi a noção do tempo...
A voz dela corria num fio cada vez mais estreito. Já não corria, pingava apenas. Lia já estava contaminada pelo gás venenoso. Não havia já absolutamente nada a fazer... apenas esperar o pior... que era mais do que evidente...
Lia tirou a sua máscara e despiu o fato. Foi como avistar uma flor no deserto. João não conseguiu deixar de ceder àquela imagem terna e breve e tirou também a sua carapaça.
- Não faças isso, João, não queiras vir comigo. Vive...
- E é viver ficar sem ti?
Selaram com os lábios todas as mágoas. Não havia mais nada no mundo para além daquela união. Inspiraram a morte lentamente no derradeiro beijo e só então inspiraram a essência da vida. Num suspiro simultâneo, morreram embalados no mais doce e terno beijo, envoltos no néon roxo e letal.